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Atletismo

12/08/2015 15h06

Toronto 2015

Entrevista: a paixão além da vista de Lúcia Teixeira pelo judô

Com baixa capacidade visual, atleta superou a falta de compreensão na família, na escola e até no esporte para se consagrar como um dos grandes nomes do país no judô paralímpico

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Na terceira série, ela fingia que enxergava a lousa da escola. Depois de um tempo, contudo, já não queria mais estudar: era difícil lidar com a diferença, que nem a família reconhecia nela. Só no judô Lúcia Teixeira se sentia bem, mesmo sendo fraca nos tatames durante a adolescência. Antes de encontrar a pegada da rival, era derrubada. Ainda assim, não queria tirar os quimonos, uma meta que não conseguiu cumprir durante seis anos, entre 2000 e 2006.

 Foi contra a vontade da família que a paulistana, que nasceu com baixa visão devido a uma toxoplasmose, retomou a sua grande paixão, desta vez já reconhecendo a sua deficiência e entre pessoas que sabiam das suas dificuldades até mais do que ela mesma. O primeiro campeonato teve de ser disputado às escondidas e, logo de cara, lhe rendeu o título brasileiro. Era apenas a primeira das tantas medalhas que hoje Lúcia não precisa mais esconder, como a prata nos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012, e o bronze individual e a prata por equipes no Mundial da Turquia, no ano passado.

 Fã dos campeões olímpicos Aurélio Miguel e Rogério Sampaio, além do companheiro de equipe Antônio Tenório, a judoca recebe a Bolsa Pódio do governo federal e, com os recursos, conseguiu se mudar para mais perto do local de treinos, no Centro de Referência do Judô Paralímpico, na Mooca (SP). As atividades são intensas, seis vezes por semana, e com um objetivo maior: os Jogos do Rio, no ano que vem. “Meu maior objetivo é ser campeã, nos Jogos e em tudo que eu me dispuser a fazer”, resume.

 O primeiro degrau desse caminho será dado nesta quinta-feira (13), durante o Parapan de Toronto. Acompanhe a entrevista que ela concedeu, na Vila dos Atletas, ao brasil2016.gov.br:

Fingimento na escola
Eu tenho toxoplasmose congênita. É um protozoário que minha mãe adquiriu na gravidez e que podia ter se instalado em qualquer parte do meu organismo. Eu digo que ele se instalou na parte mais suave, que é a visão. Se fosse no sangue, nos ossos, seria mais complicado. A minha família, por falta de conhecimento, sempre me tratou como se eu não tivesse deficiência. Na terceira série, eu fingia que via a lousa. Chegou uma hora em que eu não queria mais ir à escola porque na época era complicada essa questão das diferenças, de você não ser, entre aspas, o padrão.

Espelho para os “normais”
A informação te faz pensar diferente. Você só presta atenção em uma rua, se ela tem buraco ou não, se você conhece um deficiente. Caso contrário, isso passa desapercebido. A gente ter bons resultados no paralímpico faz a pessoa olhar com outros olhos e pensar também no outro. Acredito que a sociedade está se abrindo mais para isso. As pessoas que se dizem normais também se espelham na gente, pedem fotos, autógrafos. Conforme tem divulgação, a pessoa vai se preocupando mais, e isso é importante, não olhar para um deficiente como se ele fosse um coitado, um incapaz. É a educação que você dá para o seu filho que faz ele ser dependente ou independente, tendo ou não uma deficiência. 

Tatame mágico
Eu tenho dois irmãos e eles faziam judô, aí com 15 anos eu comecei. Eu sempre amei o judô. Tem uma magia, sabe? Não dá para explicar. Quando você põe o quimono, quando está lá em cima. Eu lembro que, quando minha mãe queria me tirar alguma coisa, era só ameaçar me tirar do judô. Era uma coisa que fazia parte de mim. Eu chegava da escola ao meio dia, almoçava e ficava no judô a tarde toda. Era maravilhoso, mas com 19 anos me mudei e só podia fazer judô aos sábados, até que acabei parando. Larguei com aquela sensação de que nunca mais ia colocar um quimono. 

“Admirável mundo novo”
Em 2006, depois de uma viagem para a Espanha, voltei para o Brasil para fazer um curso específico de massagem para pessoas com deficiência visual. Eu estava começando a aceitar que tinha deficiência. Conheci uma atleta cega, a Renata, que fazia goalball, e ela me mostrou um mundo diferente, mostrou que eu podia fazer qualquer coisa. Ela tinha um celular que falava, um recurso audiovisual de computador que nunca tinha visto. Com quinze anos, eu desisti de fazer Direito porque me falaram que eu nunca ia poder fazer porque não enxergava. Você se frustra e quer fazer o mais fácil, mas ela me mostrou uma acessibilidade que cresci sem conhecer. Junto com isso, ela ainda era atleta e tinha ido para Atenas. Uma vez, ela me emprestou um agasalho dela e, quando vesti, pensei como devia ser fazer parte da seleção, mas nunca imaginei que eu fosse estar aqui hoje e viver tudo que eu vivo. 

O quimono como lar
A Renata me apresentou à associação dela e lá ficaram sabendo que eu já tinha feito judô e me chamaram para voltar, dizendo que eu seria campeã. Eu disse que era muito ruim quando eu treinava e que não tinha nem quimono, mas eles me deram um e decidi voltar. Colocar o quimono de novo, estar no tatame, é como fazer algo que você não consegue se imaginar sem aquilo. Não sei como fiquei tanto tempo longe. É como voltar para casa depois de uma viagem de 10 anos. 

Foto: Danilo Borges/Brasil2016.gov.br

Rebeldia recompensada
Eu tinha pessoas como eu, que entendiam as minhas dificuldades até mais do que eu, que sabiam o que eu sentia. Eles diziam que eu era muito boa, que ia ser campeã, mas na minha cabeça não entrava isso. Então fui competir escondida da minha família, que tinha me proibido de fazer judô. Eu deixava os quimonos na casa da Renata. Viajei para o Rio de Janeiro sozinha e lutei. Fiz a final com a que era a campeã da categoria e fui campeã brasileira, depois de “trocentos” anos longe do judô. Era uma coisa que eu precisava provar para mim. Eu queria ver até onde eu ia. Independentemente do resultado, era uma coisa que eu precisava viver. No ano seguinte, já estava na seleção B, depois veio Mundial, Parapan e estou aqui! 

“Não é não errar”
Meu maior objetivo hoje é ser campeã, nos Jogos e em tudo que me dispuser a fazer. Ser campeã não é não errar, mas é não desistir do que eu me determinar a fazer. Esse é meu sonho. É poder aproveitar o melhor que a minha carreira hoje me dá, porque a vida de atleta é curta. Então enquanto estiver no auge, disputando por igual, eu vou estar. 

Londres 2012: Mais feliz que a campeã
Eu perdi (na final) e saí mal da luta. Aí, estava na fila para a premiação, muito chateada, e veio uma voluntária e me disse: “Por que você está chateada? Você está em Londres, em uma Paralimpíada, e foi prata!”. Aí eu falei: “Caraca! Verdade!”. Normalmente você vê a foto de um pódio e o medalhista de prata sempre está triste, mas agora olho minhas fotos e, se bobear, estava mais feliz que a campeã. Eu queria ser campeã, ouvir o hino, como atleta, como brasileira e por tudo que eu estava trabalhando até ali, mas vivi bem esse momento, que foi muito forte e feliz. Meu irmão estava lá, com a bandeira do Brasil e vibrando. Foi muita emoção. 

Mala mais cheia
As minhas expectativas (em Toronto) são as melhores. Eu me vejo bem preparada e acredito que vou sair daqui com a mala mais cheia, vou voltar com a minha medalha e espero, do fundo do coração, que seja de ouro. Quero subir no pódio, ouvir o hino. A ideia é sair daqui campeã e sem errar porque um erro pode ser fatal.

Rio 2016: Sem prata engasgada
Dá até arrepio quando penso. Estar lá, com toda a família e o seu país torcendo por você, é o final de tudo, de todas as mudanças, de tudo o que fiz e deixei de fazer. É a conclusão. Meu objetivo é a Paralimpíada, é não sair com a prata engasgada. Então trabalho para isso. Estou aqui no Pan, mas não consigo parar de pensar no Rio. Vou sair desta competição, guardar a medalha e continuar o trabalho.

Ana Cláudia Felizola, de Toronto – brasil2016.gov.br