Você está aqui: Página Inicial / Notícias / Dois bronzes e um abraço de bicampeão moldados em tropeço na última barreira

Atletismo

16/10/2018 20h58

Buenos Aires 2018

Dois bronzes e um abraço de bicampeão moldados em tropeço na última barreira

Desconsolo de Jéssica por deixar escapar pódio certo fortaleceu conquistas de Letícia Lima e Lucas Conceição. Ouro olímpico em 2004 e 2012, Félix Sánchez reanimou a brasileira

O pódio estava desenhado para Jéssica Vitória, atleta de 16 anos e 1,59m. Depois de ficar em segundo no primeiro dia de competições com direito a recorde brasileiro (59s41), bastava à paulista de Guariba superar a última das dez barreiras e acelerar os 40 metros finais dos 400m. Um toque da ponta do pé direito no obstáculo, contudo, derrubou a velocista e mudou o roteiro do filme de Jéssica e da delegação brasileira no último dia de competições do atletismo nos Jogos Olímpicos da Juventude.

Jéssica foi obrigada a ver de longe, da arquibancada, a cerimônia de premiação, reservada à venezuelana Cabezas Caracas (ouro), à argelina Loubna Benhadja (prata) e à espanhola Carla Garcia (bronze). Ficou em décimo quarto no acumulado. Antes de se juntar à delegação, chorou bastante. Teve o consolo das adversárias e, principalmente, do amigo e também velocista Lucas Conceição, também de Guariba.

Jéssica consolada pela espanhola Carla García. Foto: OIS/IOC
"Foi dali que tirei minha força. Na hora que aconteceu, busquei algo mais. A gente convive desde pequenininho e não é a primeira vez que vejo ela passar por isso. Eu me emocionei porque ela veio para ser campeã"
Lucas Conceição, bronze nos 200m livre

"Foi dali que tirei a minha força. Eu já vinha focado, claro, mas na hora que aconteceu aquilo, busquei algo mais. A gente convive desde pequenininho e não é a primeira vez que vejo ela passar por isso. Quando vi, me emocionei de verdade, porque é difícil, ela veio para ser campeã", afirmou Lucas, numa referência a uma outra queda de Jéssica, na sétima barreira do Mundial Juvenil do Quênia, em julho de 2017.

Lucas tinha uma missão complicada. Quinto na primeira classificatória dos 200m livre, precisaria de um tempo inédito em sua carreira, abaixo dos 21s, para sonhar com pódio. Largou na Raia 8, a mais externa, que dificulta a referência em relação aos rivais. Ainda assim, registrou 20s99. Cruzou a linha de chegada em segundo, atrás apenas de Abdelaziz Mohamed, do Qatar (20s68). No resultado combinado, conquistou a primeira das duas medalhas do atletismo brasileiro em Buenos Aires, um bronze com 42s67. O ouro ficou com Mohamed (41s78) e a prata, com o jamaicano Antonio Watson (42s41).

"Não tenho palavras para expressar a emoção. Vim da prova em quinto lugar. Precisava de um ótimo tempo para medalhar. Peguei a raia oito, que não é das melhores. Acreditei e veio o bronze. Eu tinha essa meta de correr para 20 segundos. Aqui consegui", celebrou o atleta, que iniciou no atletismo incentivado na escola e tinha como melhor marca pessoal 21s06.

ATL_JR_16.10.18_030808.jpg
Lucas: saiu do quinto lugar para o bronze correndo pela primeira vez os 200m abaixo de 21s. Foto: Jonne Roriz/Exemlplus/COB

O melhor da piauiense

A decepção de Jéssica ajudou a vitaminar, ainda, as passadas de outra velocista brasileira. Letícia Lima já vinha de uma bela prova dos 200m na eliminatória, com o segundo melhor tempo. Na decisão, ela e as adversárias aceleraram ainda mais. A prova foi vencida pela italiana Daila Kaddari, com 23s45. A segunda colocada foi a islandesa Jona Bjarnadottir (23s47) e Letícia fechou em terceiro, com 23s71, a melhor marca de sua carreira. 

"Já fomos adversárias de prova, mas sempre fomos amigas. Ela estava conseguindo a melhor marca e poderia ganhar medalha. Isso me deu ainda mais forças para lutar e conseguir a medalha para nós duas"
Letícia Lima

"Já fomos adversárias de prova, mas hoje e sempre fomos amigas. Fiquei muito triste. Ela estava conseguindo a melhor marca e poderia ganhar medalha. Isso me deu ainda mais forças para lutar e conseguir a medalha para nós duas", disse Letícia, pouco depois de celebrar a conquista. "Estou feliz com a prova, com minha melhor marca pessoal. Dava para ser até melhor, porque vi que na reta fiz uma besteirinha de atrasar o tranco para trás, mas foi o desespero. Conquistei o bronze", afirmou a atleta, que é piauiense de Timon e descobriu o atletismo numa prova para crianças na capital piauiense.

"O atletismo veio por acaso. Comecei a treinar para brincar. Corri uma maratoninha e ganhei uma bicicleta", contou. Dos tempos da bike para a Argentina, a velocista acumula no currículo os títulos Sub-18 dos 100m e 200m, o vice-campeonato mundial escolar nos 200m e o décimo primeiro lugar nos 200m no Mundial Juvenil do Quênia, em 2017. Dos Jogos da Juventude, leva na bagagem o novo tempo, a medalha e algo mais. "Todas essas meninas aqui são ótimas. Vai na mala um ótimo aprendizado da competição".

ATL_JR_16.10.18_030874.jpg
Letícia Lima e o bronze nos 200m livre: melhor marca pessoal da atleta

Incentivo de bicampeão olímpico

"O importante é começar a esquecer já, tirar esse medo daí de dentro. Senão, cada vez que você entrar numa competição, vai pensar: 'Ah, é possível que vá cair, que vá falhar'. Isso passa"
Félix Sánchez

A decepção olímpica de Jéssica ganharia ainda um terceiro motivo para ser ressignificada no Parque Olímpico da Juventude. Bicampeão olímpico e bicampeão mundial dos 400m com barreira, o dominicano Félix Sánchez viveu com intensidade os altos e baixos que a vida de atleta proporciona. Em Buenos Aires na função de atleta-modelo, ele teve, a convite de reportagem do rededoesporte.gov.br, um momento com Jéssica na arquibancada.

"Eu sei que é difícil agora, mas você tem de usar o episódio como motivação. O importante é começar a esquecer já, tirar esse medo daí de dentro. Senão, cada vez que você entrar numa competição, vai pensar: 'Ah, é possível que vá cair, que vá falhar'. Esquece. Isso passa. É esporte. O importante é aprender com as decepções e superá-las. A vida é como você a leva. Se você cai, levanta. O bom é que você é jovem. No momento em que menos esperar que vá fazer algo bom, vai acontecer. Não leve a pressão contigo", aconselhou Sánchez.

O dominicano fala com conhecimento de causa. No período entre 2001 e 2004, foi imbatível na sua especialidade. Conquistou os mundiais de Edmonton, no Canadá, em 2001, e de Paris, na França, em 2003. Foi ouro olímpico em Atenas (2004) com soberania. Mas a partir dali viveu uma espécie de inferno astral que durou oito anos.

"Foram oito anos, entre lesões e problemas pessoais. Não ganhei mais nada", contou para Jéssica. Em 2005, bateu na trave no Mundial e ficou com a prata. "No Pan de 2007, no Rio, me choquei com a última barreira e terminei em quarto. São coisas que passam", afirmou.

Jéssica e Félix: aconchego no exemplo do dominicano bicampeão olímpico dos 400m com barreira. Foto: Gustavo Cunha/rededoesporte.gov.br

Teve mais. Em 2008, no dia em que disputaria as eliminatórias de sua prova nos Jogos Olímpicos de Pequim, Sánchez ficou sabendo que sua avó havia morrido. Pensou em desistir, em abandonar o megaevento, mas resolveu correr. Abalado, foi o vigésimo segundo na eliminatória, entre 25 concorrentes. Quatro anos depois, já com 34 anos e desacreditado, fechou a prova em 47s63 para conquistar sua segunda medalha de ouro.

asset_GH2_1043_27019_ioc_20181017_004920.jpg
Nerisnelia terminou em oitavo no salto triplo: Foto: Gabriel Heusi/OIS/IOC

"Consegui o topo do pódio de novo em 2012. Quando ninguém esperava. Assim, não se renda. Você escolheu um evento que se resume a saltar obstáculos. E o que aconteceu é um erro em um deles. Eu sei que agora é duro, mas não se deixe sentir mal. Isso é o esporte", concluiu, para logo em seguida dar um abraço e registrar o momento numa foto.

"Fiquei feliz agora. Na próxima vez, certamente vou estar mais confiante. Perdi a concentração ali no fim, mas acontece. Ganhei experiência. Posso ficar até entre as melhores do mundo", afirmou Jéssica, com um esboço de sorriso.

Outros resultados

Outros cinco atletas brasileiros disputaram as finais no último dia do atletismo. Entre eles, Marcos Paulo Ferreira, 17 anos, terminou a prova dos 110 metros com barreiras em quinto lugar, após alcançar a melhor marca pessoal: 13s62. "Não estou feliz porque sei que poderia ter corrido com tempo mais baixo na semifinal. Naquela prova eu estava junto com o líder, que correu 13s33 segundos, mas infelizmente bati duas vezes na barreira e terminei com 13s77, o que acabou prejudicando o resultado final", lamentou. "Eu queria ter feito abaixo de 13s40 segundos, que é o recorde brasileiro. Mas foi importante correr entre os melhores do mundo e alcançar uma marca boa", concluiu.

No lançamento de dardo, os dois brasileiros terminaram a competição em nono lugar. Guilherme Moreira, 17 anos, encerrou a prova após somar os dois melhores lançamentos que resultaram em 141,53m, e Bruna Vieira de Jesus, 16 anos, alcançou a marca acumulada de 95,29m. No salto triplo, Nerisnelia dos Santos Sousa, 17 anos, acabou em oitavo lugar, com 25,14m após a soma de seus dois melhores saltos. Na final dos 400m com barreiras, Caio de Almeida, 17 anos, ficou em oitavo lugar, com o tempo acumulado de 1min47s92.

Balanço

Com os resultados deste último dia, o atletismo supera a participação dos últimos Jogos Olímpicos da Juventude, em Nanquim 2014, quando não havia conseguido medalhas. Na primeira edição, em Cingapura 2010, foram três pódios, sendo duas de ouro com Caio Cezar Fernandes dos Santos (salto em distância e revezamento medley) e uma prata com Thiago Braz (salto com vara). Em Buenos Aires 2018, além das duas medalhas de bronze, o Brasil colocou 17 atletas entre os dez primeiros e 11 entre os Top 8. No total, a delegação nacional da modalidade tinha 21 competidores.

Gustavo Cunha e Andrea Cordeiro, de Buenos Aires, na Argentina - Rededoesporte.gov.br