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Natacao paralímpica

09/04/2018 07h00

Ninguém Nasce Campeão

A menina do cartaz que se tornou tricampeã mundial

Edênia Garcia se encantou vendo os Jogos de Sydney e teve a primeira noção de que seria atleta ao receber medalhistas no aeroporto

Em um dos corredores do saguão do Aeroporto de Natal, uma menina de 13 anos segura um cartaz simples, feito em casa algumas horas antes: "Sejam bem vindos, parabéns!". Nos dias anteriores, ela havia acompanhado pela televisão, em um supermercado da capital potiguar, cenas dos Jogos Paralímpicos de Sydney, na Austrália, em 2000. A parte da delegação nacional que aterrissava no Rio Grande do Norte tinha atletas como Adriano Gomes, Clodoaldo Silva, Franscisco Avelino e Rildene Fonseca, destaques na natação paralímpica.

"Sabe aquela coisa lúdica, de criança, de olhar no livro, ver onde é a Austrália no mapa e querer ir? Eu pensava: estou indo para o aeroporto receber os caras que estão vindo de lá com medalhas. Eles vinham passando e eu com o cartaz. Jamais imaginava naquele momento que um dia poderia ser eu ali, mas fazer o cartaz e participar do momento foi especial. Eles subiram no ônibus, eu consegui um lugar na frente, e eles com a medalha chacoalhando no peito. Fiquei muito impactada", recorda a tricampeã mundial Edênia Garcia, hoje com 30 anos. Ela é a terceira personagem da websérie Ninguém Nasce Campeão, publicada pelo Rede do Esporte desde a última sexta-feira (6.04). Os 17 vídeos resgatam momentos em que os atletas ainda não sabiam que teriam a projeção e o destaque que alcançaram, e busca o que foi essencial para que a caminhada desse certo.

 

"Eu pensava: estou indo para o aeroporto receber os caras que estão vindo da Austrália com medalhas. Eles vinham passando e eu com o cartaz. Jamais imaginava naquele momento que um dia poderia ser eu ali, mas fazer o cartaz e participar do momento foi especial"
Edênia Garcia

Os Jogos australianos funcionaram para a atleta cearense como uma semente irremediável. "Ali o esporte me ganhou. Acendeu aquela vontade de viajar e voltar com medalhas", diz. Edênia procurou a prática esportiva, num primeiro instante, como forma de fisioterapia. Ela nasceu com a Doença de Charcot-Marie-Tooth, que é progressiva e afeta a musculatura, em especial as dos pés e das mãos. "Nós nos mudamos do Ceará para o Rio Grande do Norte. Um neurologista nos recomendou uma escola de natação que fazia atividades com pessoas com deficiência".

Na chegada para os primeiros treinos, o encantamento era bem maior que a habilidade técnica. "Eu não sabia nadar direito, mas lembro que fiquei super feliz. Era uma piscina linda, de 25 metros. Entrei e a professora jogou uns brinquedos no fundo, pediu para eu pegar. Colocou um bambolê, pediu para eu passar por dentro. Depois de um bom tempo, fiquei sabendo que aquela professora viu em mim algo diferente, e por isso me direcionou a uma associação especializada. Em 2000 entrei, aprendi do zero os quatro estilos. Fazendo treinos simples, mil metros por dia, coisa para criança".

Treinamentos, nutrição, horas de sono e acompanhamento médico: Edênia gosta de tudo sempre feito com rigor, de forma regrada. Foto: Marco Antonio Teixeira/MPIX/CPB

Tem de ser certinho...

A rotina de treinos acendeu em Edênia uma tendência que ela já carregava "de fábrica", no DNA. "A palavra-chave dela é disciplina. É intensamente dedicada. Faz tudo o que está ao alcance dela. Sabe que tem de treinar, de se alimentar direito, de ter o descanso. Faz tudo com horários certinhos, regrados", define Edeniely Garcia, 29 anos, irmã mais nova e parceira sempre presente na rotina de deslocamentos da atleta entre o Centro de Treinamento Paralímpico, em São Paulo, e a residência da família, em São Caetano (SP). 

"A palavra-chave dela é disciplina. Ela é intensamente dedicada. Faz tudo o que está ao alcance dela. Sabe que tem de treinar, de se alimentar direito, de ter o descanso. Faz tudo com horários certinhos, regrados"
Edeniely Garcia, irmã de Edênia

E o "certinho" é "certinho mesmo", sem direito a jeitinhos. Aos dez anos, ela conversava em casa sobre o que seria quando crescesse. Gostava, na época, da hipótese de ser juíza ou delegada. A ideia era tirar de circulação todo mundo que fizesse coisa errada. "O meu pai me provocava: 'Você me prenderia também?' E eu respondia: 'Lógico, você seria o primeiro'. Nasci com isso. De fazer as coisas certas. Se tem de treinar, treino. Tem de se alimentar de tal forma, me alimento. Nasci com isso em minha personalidade".

Sete vezes sete

O resultado desse perfeccionismo inato se mostrou promissor logo em 2001, num regional Norte-Nordeste disputado em Recife (PE). Edênia disputou quatro provas individuais e quatro por equipe. Conquistou quatro ouros individuais com quatro recordes brasileiros e três ouros e uma prata nos revezamentos.  

"Antes dos revezamentos, que foram por último, eu estava exausta. Achei que não conseguiria. Até falei com a Rildene, minha amiga, que achava que não iria dar conta. Meio que entrei em pânico. E ela me respondeu: 'Edênia, o esporte paralímpico vicia. Você vai ver'. E fui. Provei o gostinho de nadar em equipe e foi mágico", relembra.

Na primeira vez que retornou para casa como centro das atenções, houve um instante de hesitação, de susto. "Eu sempre fui tímida, hoje um pouco menos. Cheguei na associação e havia televisões me esperando. Fiquei escondida e só ouvia uma repórter falando que queria falar com a Edênia, que tem 14 anos e foi para a primeira competição. E eu lá, escondidinha. Aí minha mãe chegou e falou: 'Menina, sai daí. Vai lá e fala'. Foi um choque, uma experiência engraçada e uma base para que eu tivesse noção do que viria pela frente. E devagarinho aquilo não me amedrontou mais".

No fim daquele ano de 2001, ela foi para a Argentina, num pré-Mundial, a primeira competição fora do país. Retornou com cinco ouros e um recorde das Américas. "Voltei para casa achando que era como os meninos de Sydney. Quando vi minha família me esperando, pensei que era real, que podia voltar de outro país e que minha família estaria me esperando. Ficou sinalizado ali o que seria a minha profissão".

Bronze nos Jogos Paralímpicos de Londres, o terceiro pódio em três paralimpíadas. Foto: Fernando Maia/CPB

O fator paralímpico

Em 2004, os Jogos Paralímpicos se tornaram realidade pela primeira vez para a Edênia atleta. Já especialista nos 50m costas, ela conquistou na Grécia uma medalha de prata na Classe S4. As classificações funcionais na natação vão de S1 a S10. Quanto maior o número, menor a limitação de movimentos dos atletas.

"É um pódio super especial. Foi meu primeiro em Paralimpíadas. Era o meu foco total. No fim de 2003, voltei de duas competições importantes, uma na Nova Zelândia e o Parapan na Argentina. Fui ouro nas duas. Mesmo assim, havia gente que dizia para minha mãe que eu talvez não fosse para a seleção. A medalha é importante por isso. Muitas pessoas não acreditavam que eu chegaria, mas eu não só estive lá como disputei quatro provas individuais e trouxe uma medalha".

A classe S4 e a prova dos 50m costas se tornaram marca registrada. Foi nela que a atleta conquistou o bronze em Pequim (2008) e a prata em Londres (2012). Foi nela também que a menina do cartaz do aeroporto registrou um tricampeonato mundial, nas edições disputadas em 2002 (Mar del Plata, na Argentina), 2006 (Durban, na África do Sul) e 2010 (Eindhoven, na Holanda). De quebra, rendeu a Edênia a prata no Mundial de Montreal, no Canadá, em 2013, e o bronze em Glasgow, 2015, na Escócia. Se achar que vale, acrescente aí um ouro no Parapan de Toronto, em 2015.

Edênia nos Jogos Rio 2016: morte do pai e avanço da doença foram adversários extras na Paralimpíada disputada em casa. Foto: André Motta/rededoesporte.gov.br
"Um campeão é aquele que na vitória e na derrota se comporta igual. Porque ele é campeão, ele não se torna quando ganha. A gente nasce com um pouquinho de ser campeão e se torna maior quando descobre que a derrota não te diminui, mas te acrescenta"
Edênia Garcia

A necessária reinvenção

No ciclo para os Jogos Rio 2016, contudo, o receituário passou a incluir mais adversários do que aqueles que ela já tinha de encarar nas piscinas. A Doença de Charcot-Marie-Tooth progrediu. A mobilidade ficou mais restrita. Atividades do dia a dia ficaram mais difíceis. "Eu sabia que minha deficiência vinha progredindo, mas nunca fui de lamentar. Eu falo muito de auto-performance. A deficiência vive comigo e não eu com ela".

Mesmo com dificuldades, se manteve na categoria. Um mês antes da abertura dos Jogos Paralímpicos do Rio, em 6 de agosto, um novo baque: ela recebeu a notícia de que seu pai, Raimundo Garcia de Melo, havia morrido em decorrência de uma parada cardiorrespiratória decorrente de um câncer linfático, aos 56 anos. "Foi repentino. A gente sabia que ele estava doente, mas que havia tratamento. Foi um baque. Tudo o que já tinha passado caiu por terra naquele momento. Não consegui viver o luto porque estava na reta final de preparação. Cheguei ao Rio fragilizada. Achei que já tivesse passado por tudo, mas ali refiz toda a motivação, o foco. Foi difícil e dolorido", afirma.

Na piscina, a medalha não veio. Edênia terminou com a sétima posição nos 50m costas. Foi a primeira vez em quatro Paralimpíadas que não chegou ao pódio. Frustrada, chegou a pensar em aposentadoria, mas rapidamente refez os planos. "A medalha perante a perda de uma pessoa próxima é insignificante. Quando saí da piscina e tive plena certeza de que nadei o máximo que podia naquele momento, coloquei os pés no chão e falei com minha família: 'esta é a primeira edição em que volto sem medalha, mas não é motivo de parar. Desistir só porque fracassei?' Parei e refiz a minha ideia do que é ser campeão", diz a atleta. "Um campeão, para mim, é aquele que na vitória e na derrota se comporta igual. Porque ele é campeão, ele não se torna quando ganha. A gente nasce com um pouquinho de ser campeão e se torna maior quando descobre que a derrota não te diminui, mas te acrescenta".

O Mundial do México: nova classificação funcional e a rotina de pódios de sempre. Foto: Daniel Zappe/CPB/MPix

 Uma nova versão

A decisão por não se aposentar significou, nos meses seguintes, uma série de adaptações. Pouco antes do Mundial disputado no México, em 2017, ela passou por uma reclassificação funcional. Saiu da categoria S4 para a S3, o que indicou uma redução na mobilidade de seu corpo, e uma adequação competitiva no cenário internacional. A questão do descanso passou a ser importante, o que provocou uma adaptação na quantidade e intensidade de treinos. Atividades cotidianas, como sair da cadeira de rodas para a cama, escovar os dentes e se alimentar passaram a exigir adaptações.

"Tenho um projeto ambicioso: quero estar à frente da gestão do esporte paralímpico. Estou me profissionalizando para isso. Antes, tenho grandes campeonatos no horizonte. E um deles será na Austrália. Lá atrás, no início, vi meus amigos voltando de lá e imaginei um dia ir até lá. Quem sabe não seja neste ano?"

"Tive uma excelente base em 2017, mas ao mesmo tempo tive de digerir essa queda de categoria. Muita gente me parabenizou, mas não é algo bom. No fim das contas, significa que estou piorando em minha doença degenerativa", pondera. Em outra frente, o ano permitiu que ela conhecesse uma nova versão de si própria. Ela conquistou a 13ª medalha em Mundiais, com a prata nos 50m costas.

"Nos Jogos Paralímpicos de Atenas, eu era a mais jovem da delegação. No Mundial de 2017, era a mais experiente, a veterana. Até há um tempo eu não pensava nisso, mas devagarinho a gente cria uma rotina pré-competição. No Mundial usufruí melhor disso. Todos os anos de bagagem, de competição, se refletiram lá. Foi uma prova que amei nadar. E voltar com a prata foi de extrema importância. Você volta a se achar capaz de estar entre as melhores".

E é essa versão renovada de Edênia que projeta um futuro próximo fora das piscinas. "Entrei em 2018 mais leve. Com foco e determinação, mas tranquila, sabendo o que tenho de fazer daqui para frente. Uma Edênia que se prepara, estuda, e que quer continuar no esporte paralímpico depois de parar de nadar profissionalmente. Tenho um projeto ambicioso: quero estar à frente da gestão do esporte paralímpico. Estou me profissionalizando para isso. Antes, tenho grandes campeonatos no horizonte. E um deles na Austrália, no Pan Pacífico. Lá atrás, no início dessa jornada, vi meus amigos voltando da Austrália e imaginei um dia ir até lá. Quem sabe não seja neste ano que vou realizar o sonho?", encerra a atleta, que recebe a Bolsa Pódio do Ministério do Esporte. 

Gustavo Cunha, rededoesporte.gov.br