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Judô

29/08/2019 07h40

Mundial de Judô 2019

A luta simbólica de Popole Misenga por reconhecimento do esporte e do passaporte

Atleta da equipe de refugiados, que vive e treina no Brasil, perdeu na estreia para italiano. Preparação não foi melhor porque visto foi negado para competir em três etapas do circuito

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Existem duas constantes na vida de Popole Misenga: a negação e a reação. Um processo que teve tradução simbólica na passagem rápida do atleta pelo Campeonato Mundial de Judô em Tóquio, no Japão. Integrante da equipe de refugiados da Federação Internacional de Judô (IJF, na sigla em inglês) e do Comitê Olímpico Internacional (COI), ele estreou contra o italiano Matteo Marconcini. Até ia levando bem a luta enquanto se manteve de pé, mas no Golden Score acabou vendo o sonho de seguir adiante ser negado por uma chave de braço no solo.

Popole na entrada para a luta que disputou no Mundial de Tóquio, no Japão. Foto: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br

"Eu estava muito bem. Controlando em cima. Sabia que ele queria o chão. Ele me puxava sempre, direto. É lá que sinto mais dificuldades. Em pé estou melhor, mais consistente, mas tenho que aprimorar meu jogo de chão mesmo", reconheceu o atleta, treinado pelo técnico Geraldo Bernardes, no Rio de Janeiro, no Instituto Reação. "Mas vou treinar mais, ficar melhor e voltar para as próximas", avisou.

"Recebi o convite da Federação Internacional, mas não pude disputar três etapas do circuito porque o visto foi negado. Por isso a preparação para o Mundial não foi melhor ainda"
Popole Misenga

A sina de negações e reações acompanha o atleta em várias faces de sua rotina. No plano mais recente, se verificou em três ocasiões em que tinha planos de disputar etapas do circuito internacional na preparação para o Mundial. Mesmo com recomendações do COI, da IJF e da Agência da ONU para refugiados (ACNUR), o visto lhe foi negado para competir em etapas da Turquia, da Croácia e do Canadá.

"É o problema maior que temos agora. Atrapalha bastante a gente. Nossa preparação é feita dentro de um cronograma em que os torneios são estratégicos para ele ganhar consistência, e temos esbarrado nisso, no visto, no passaporte. A questão dos refugiados é crônica no mundo", afirmou Geraldo Bernardes. "Agora temos três competições pela frente: Dubai (Emirados Árabes), Osaka (Japão) e o Grand Slam de Brasília. Estamos felizes de que nessas não haverá problema", completou o treinador.

Atualmente, Popole recebe apoio financeiro e de estrutura de treinos da FIJ e do COI. O atleta já fez parte da primeira delegação de refugiados a disputar uma edição dos Jogos Olímpicos, em 2016, no Rio de Janeiro. Na ocasião, foram 11 atletas. Venceu na estreia e acabou eliminado na segunda rodada. O congolês-brasileiro agora treina para tentar repetir a dose nos Jogos de Tóquio, no Japão, em 2020. "Estou focado para ir aos Jogos Olímpicos. Treinando sempre. Todos os dias com muita vontade. A gente tem de gostar e valorizar o local onde é acolhido", disse.

Enquanto conseguiu manter a luta em pé, Popole dominou as ações contra o italiano Matteo Marconcini. No chão, sofreu a chave de braço. Fotos: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br

Histórico de resiliência

"Ele é um bom atleta, mas, mais do que isso, buscamos que seja uma pessoa socialmente aceita e inserida. O Brasil tem tratado ele bem. Virou o novo berço dele. Queremos que ele se sinta cada vez melhor"
Geraldo Bernardes, técnico de Popole Misenga

A primeira negação histórica na trajetória de Popole foi da noção de identidade na nação em que nasceu. Ele precisou primeiro se deslocar internamente de maneira forçada na República Democrática do Congo, como efeito de um sangrento conflito étnico, acompanhado de genocídio e guerra civil.

"Aos sete anos, saí de Bukavu, minha cidade, por causa da guerra. Fugi pela floresta por alguns dias. Em uma província pequena, subi em um barco que me levou até a capital, Kinshasa. Lá fiz amizade e comecei a morar com um amigo", narrou Popole ao rededoesporte.gov.br numa outra entrevista. Ele deixou três irmãos para trás. A mãe havia sido morta.

Na capital descobriu o judô. Passou a se dedicar. Melhorou e se destacou. Foi convocado para o Mundial de 2013, que seria disputado no Rio de Janeiro. Uma outra sequência de privações na viagem, contudo, foi o estopim para outra mudança. Já no Rio, em agosto, a empolgação pelo Mundial se transformou em desilusão profunda. De acordo com o judoca, o chefe da delegação pegou documentos, dinheiro e até quimonos dos atletas e desapareceu. Vieram a fome e o desamparo.

Popole conseguiu um quimono emprestado e chegou a fazer a primeira luta naquele Mundial. Perdeu a disputa, mas não queria perder a dignidade. "Lutei lá com fome, com sofrimento. Tudo ficou no coração. E decidi que ia ficar aqui mesmo, no Brasil. Alguém vai me ajudar", recordou.

Popole vagou pelas ruas alguns dias. A incomunicabilidade dificultava a situação. Ele só falava francês. Até que um angolano o encontrou e o levou para a Cáritas, entidade católica que presta auxílio a refugiados. Passou a morar em Brás de Pina, um bairro da zona Norte do Rio onde vivem muitos africanos. Tempos depois, foi acolhido pelo Instituto Reação, onde treina até hoje.

"Ele treina conosco na unidade da Cidade de Deus. Tem sido fiel ao nosso trabalho. É um bom atleta, mas, mais do que isso, buscamos que seja uma pessoa socialmente aceita e inserida na sociedade. O Brasil tem tratado ele muito bem. Virou o novo berço dele. Queremos que ele se sinta cada vez melhor e que cresça como atleta. Treinamento ele está tendo", disse Geraldo.

Popole nos Jogos Olímpicos Rio 2016: vontade de repetir a dose em 2020, no Japão. Foto: Roberto Castro/rededoesporte.gov.br

Uma questão mundial

Segundo informações de 2018 da ACNUR, há cerca de 70,8 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos. Desses, cerca de 25,9 milhões são refugiados e 3,5 milhões são solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado

De acordo com a quarta edição da publicação Refúgio em Números, divulgada em julho de 2019, o Brasil reconheceu oficialmente em 2018 um total de 1.086 refugiados de diversas nacionalidades. Com isso, o país atingiu a marca de 11.231 refugiados oficialmente pelo Estado brasileiro. Desse total, os sírios representam 36% da população refugiada com registro ativo no Brasil, seguidos pelos congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%. O número de pedidos de refúgio, contudo, é bem maior.

Em 2018, o país teve o maior em número de solicitações de reconhecimento de condição de refugiado na história em função do fluxo venezuelano de deslocamento, que aumentou exponencialmente. No total, foram mais de 80 mil solicitações, sendo 61.681 de venezuelanos. Em segundo lugar aparece o Haiti, com 7 mil solicitações. Na sequência estão cubanos (2.749), chineses (1.450) e bengaleses (947).

A questão dos refugiados, contudo, tem dimensão global. Segundo informações de 2018 da ACNUR, há cerca de 70,8 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos. Desses, cerca de 25,9 milhões são refugiados e 3,5 milhões são solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado. Os países que mais possuem refugiados são Turquia (3,7 milhões), Paquistão (1,4 milhão) e Uganda (1,2 milhão). O documento apura que 67% dos refugiados vêm de três países: Síria (6,7 milhões), Afeganistão (2,7 milhões) e Sudão do Sul (2,3 milhões).

Infográfico - Mundial de Judô 2019

Gustavo Cunha, de Tóquio, no Japão - rededoesporte.gov.br